Sambista era conhecido por dar voz aos malandros da periferia

Gilberto Costa/ Repórter da Agência Brasil
O encontro iniciado na tarde de sábado deverá terminar no domingo com churrasco. “Serão praticamente dois dias de festa, entendeu? A gente canta samba à vontade, inédito e gravado, e faz aquela reverência ao nosso mestre.” As expectativas de duração da festa e também do público presente são de Roxinho, autor de Transação de Malandro e A Semente – um dos grandes clássicos do sambista –, entre outros sambas gravados por Bezerra.
Feijoada e churrasco marcam também os 12 anos de funcionamento do Q.G. dos Compositores e Amigos do Bezerra da Silva, que também funciona em Mesquita. O convite está nas redes sociais, o evento é para todos, mas não deve aparecer nenhum “cagoete”, “bicho”, “mané” ou “otário”. Esses tipos da linguagem informal, muito peculiar em parte do Rio de Janeiro, são detestados pelo sistema planetário de sambistas que ainda orbita Bezerra.
"Bizerrês"
“De cagoete, ninguém gosta. É uma praga, coisa ruim. Não vê na polícia? Tem sempre um safado lá pra dedurar, pra dizer qual é paradinha do irmão”, explica o compositor Tião Miranda, autor de Língua de Tamanduá, samba cantado por Bezerra da Silva no disco Alô Malandragem, Maloca o Flagrante, de 1986. A canção é especialmente dedicada aos delatores ou “traíras”, “dedos de seta”, “dedos de radar”, “línguas nervosas”, conforme o léxico de Bezerra da Silva.
“Bicho”, no mesmo dicionário, é vagabundo e até bandido. “É quem não quer nada, não quer trabalhar, não faz nada. É quem dá tiro na polícia, mata os outros quando vai assaltar”, traduz Tião Miranda. “Malandro demais vira bicho”, alertava Bezerra no samba Os Federais Estão Te Filmando, assinado por Silva Jr. e gravado em 1993.
“Mané” e “otário” são sinônimos, e no "bizerrês" querem dizer algo mais do que tolo ou ingênuo. “O otário é aquele cara que te dá um bote. Pede dinheiro emprestado a você, e não te paga. Tudo que ele faz está errado”, descreve o compositor Enedir Vieira Dantas, mais conhecido como Pinga entre as rodas de samba da Baixada Fluminense e autor de músicas como Quem Usa Antena é Televisão, feita em parceria com Celsinho da Barra Funda e gravada por Bezerra da Silva em 1986.
Para entender mesmo o que é otário ou mané é preciso consultar a versão de antônimos do Dicionário de Bizerrês. As duas palavras são usadas em diferentes músicas como o contrário de malandro. Afinal “malandro é malandro e mané é mané”, como há anos explica a letra de Neguinho da Beija-Flor, registrada na voz de Bezerra da Silva em disco de 2000.
O malandro do Bezerra
O malandro é o principal personagem de Bezerra da Silva. Era o embaixador das favelas, o cronista da vida das pessoas que moram nas periferias e nas comunidades mais pobres. A história de Bezerra da Silva o habilita para essas atribuições. Ele viveu os problemas que retratou em canções próprias ou do grupo de amigos compositores como Roxinho, Tião e Pinga.
Batizado no Recife como José Bezerra da Silva, foi abandonado pelo pai antes de nascer em fevereiro de 1927. Como ainda acontece com alguns brasileiros, só obteve registro civil tardiamente, aos 15 anos, quando foi trabalhar na Marinha Mercante – de onde foi expulso ao denunciar tentativa de assédio sexual de um oficial.
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Bezerra dava voz aos moradores da periferia do Rio de Janeiro, cantava a malandragem e condenava os "caguetas". Foto: Gravadora RCA |
Ainda adolescente, imigra clandestinamente para o Rio de Janeiro para localizar o pai. Encontra, mas o convívio na casa do genitor durou menos de uma semana. Sozinho no Rio, vai trabalhar na construção civil. Sem dinheiro para alugar uma casa, dorme nas obras onde trabalhava. Adulto jovem, se casa pela primeira vez e vai morar no Morro do Cantagalo. Terminado o relacionamento, Bezerra da Silva vira morador de rua por mais de seis anos em Copacabana.
“Eu me identifiquei muito com a realidade do Bezerra, porque eu tenho uma origem humilde, sou filho de uma empregada doméstica. Meu pai é um vendedor da [Rua] 25 de março [em São Paulo]. E eu nasci, cresci e ainda resido aqui em Carapicuíba [cidade periférica na Região Metropolitana de São Paulo]”, conta o historiador Eder Sedano, autor do livro Bezerra da Silva: Música, malandragem e resistência nos morros e subúrbios cariocas. Apesar de ter o livro publicado e o doutorado concluído, ele procura emprego há mais de um ano para complementar a renda.
Detido para averiguações
“Eu acho que a grande lição de Bezerra da Silva é como o Estado lida com os pobres, efetivamente. E a criminalização é um dos instrumentos disponíveis para isso”, aponta o advogado e mestre em linguística Yuri Brito Santos, morador de Salvador. Para ele, Bezerra mostraria que esse segmento marginalizado da sociedade é considerado suspeito até que se prove o contrário. “A premissa do princípio da inocência, do Estado Democrático de Direito... isso não se aplica às comunidades carentes cuja voz ele ecoa através da música.”
Na opinião de Santos, que escreveu o livro Bezerra da Silva: A Criminologia na Voz do Morro, o sambista cantava um Brasil mais cru, menos atrelado à visão folclórica de um país amistoso. “O que a gente encontra é um Brasil hostil, em vários sentidos, e para as mais variadas pessoas. E aí Bezerra canta também essa realidade. Ele brinca, tem o lado cômico, que também é muito próprio de nossa cultura.”
Partido alto
“Bezerra da Silva acabou criando, com o Dicró, uma linguagem irônica, bem-humorada e que falava muito desse dia a dia das comunidades e das pessoas mais simples. Era um samba muito swingado também, muito bem feito”, atesta o cantor e compositor Roberto Frejat. Em meados dos anos 1990, quando ainda fazia parte da banda Barão Vermelho, regravou um sucesso de Bezerra: Malandragem, Dá Um Tempo, composta por Adelzonilton Barbosa da Silva, também de Mesquita e já falecido.
“Foi uma gravação muito feliz, no final das contas. Ela fez bastante sucesso, tocou bastante no rádio e foi uma coisa que ajudou muito a carreira do Bezerra, [digo] sem pretensão alguma. Ele, algumas vezes, me agradeceu por isso, porque essa música o trouxe de volta para a cena, todos nós ficamos muito felizes por isso. E, a partir dali, a gente desenvolveu uma relação de amizade muito bacana”, recorda-se Frejat em entrevista à Agência Brasil.
Além de tocar percussão, Bezerra da Silva estudou violão clássico por oito anos, sabia tocar piano e, quando ficou doente com problemas respiratórios, aprendeu a tocar sax para exercitar os pulmões.
O cantor, compositor e músico multi-instrumentista faleceu em 17 de janeiro de 2005, aos 77 anos, após complicações nos pulmões. Seu último trabalho, Caminho da Luz, no estilo gospel, foi lançado postumamente.
O mesmo Bezerra, que já havia tecido críticas a pastores evangélicos em O Bom Pastor, de 1989, e O Pastor Trambiqueiro, de 1991, tornou-se evangélico neopentecostal no fim da vida. Talvez essa reviravolta merecesse um último samba, mas Bezerra não estaria mais aqui para cantá-lo. Coube a Tião Miranda, então, uma interpretação do que pode ter sido a malandragem final do parceiro. “Bezerra morreu em Cristo, graças a Deus. Nessa aí o diabo levou uma rasteira legal.”
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