Corpus Christi, convite para uma existência eucarística - II

“Ide à cidade; um homem carregando um jarro de água
virá ao vosso encontro” (Mc 14,13)

Retomamos nossa reflexão, iniciada na coluna da última quarta-feira, dia 02 de junho, na qual contemplamos a figura de um simples desconhecido, um homem carregando um jarro de água, que acolheu, em sua casa, a Jesus e seus discípulos para a última Ceia, na qual foi instituída a Eucaristia. Celebrar o Corpus Christi é permitir-se ser casa-coração que acolhe o Corpo Eucarístico do Senhor e, igualmente, o acolhe nos corpos dos demais, especialmente os desfigurados pelas rivalidades interpessoais excludentes e, também, os feridos pelas enfermidades, miséria, fome, injusta exclusão social.

Se existe uma atitude de vida que pede hoje o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da acolhida. Um dos sintomas do processo de desumanização que estamos vivendo é justamente a resistência em acolher quem é diferente, quem pensa diferente, quem age diferente...

A acolhida é um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes. Por isso, buscamos inspiração no modo original e criativo de ser presença acolhedora na pessoa do “homem do cântaro”.

Tudo isto vem dizer a todos nós que não é suficiente encontrar com os outros para um serviço útil e parcial, mas é preciso investir a nossa própria vida na proximidade viva, no compromisso solidário, no colocar-nos à disposição para ajudar os outros a serem o que verdadeiramente são, o único caminho para a humanização. Trata-se, pois, de nos perguntar o que significa hoje ser “presença eucarística”, partindo do fato de que no coração do seguimento de Jesus não há – e não pode haver – só um serviço, mas um encontro, rico em assombro e fascinação.

O contexto social pós-moderno nos coloca numa situação que acaba atrofiando este impulso tão humanoda acolhida; aqui podemos indicar algumas características próprias de nosso tempo que complicam de modo peculiar a vivência desta virtude: as dificuldades que o ser humano atual tem para abrir-se e escutar uma voz diferente da própria, bem como uma disfarçada resistência para acolher a grandeza do mistério do outro que vem ao seu encontro; há um medo generalizado dos outros que não fazem parte do próprio “gueto”... e as casas se tornaram verdadeiras fortalezas, cercadas de parafernália eletrônica de segurança.

No entanto, a virtude da acolhida é um modo de proceder característico do(a) seguidor(a) de Jesus; implica a capacidade de abertura e acolhida daquele que vem de “fora”, o estranho, o diferente...A acolhida é uma das múltiplas manifestações da capacidade de amar.

O amor verdadeiro se exprime, sobretudo, através de uma relação em que o outro é acolhido como próximo.A acolhida se apresenta como um valor humano e espiritualmente vital, conectado, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade de cada um que sempre requer ser acolhido e aceito, que sempre precisa encontrar espaços humanizadores de convivência e comunhão.

Essa relação de acolhida supõe abrir-nos de verdade à realidade do outro, sem reduzi-lo às nossas projeções, nem o submeter às nossas categorias mentais, sem anular seu mistério e contando com o imprevisível, com o inesperado, com o radicalmente novo; em definitiva, com o que supera o plano das nossas expectativas.

Receber as pessoas com atenção, romper distâncias, escutá-las, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária. A acolhida implica uma integração entre escuta e serviço.Por isso os pobres são especialistas em hospitalidade e acolhida.

A presença silenciosa, original e comprometida do “homem do cântaro” desvela e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, uma “existência eucarística”: descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências.

Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher outras vidas na nossa própria casa; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.

Só tem sentido celebrar “Corpus Christi” quando abrirmos nossas casas para os “corpos” explorados, manipulados, violentados, escravizados, destruídos...Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo epresente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, no nosso lado...

Medoro, irmão menor-padre pecador

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