
Estefânia Barbosa, Natália Lima, Crislane Rosa, Janaína Barbosa, Regiane Carvalho, Leandro Jacinto Pereira e Camila Daniel na mesa redonda “Mulheres negras e narrativas emancipatórias”, no Instituto Três Rios, em 2023 (Imagem: Acervo pessoal)
*Camila Daniel
Esta semana começou com uma notícia que chocou o mundo. O então presidente dos Estados Unidos, Joe Binden, anunciou sua saída da corrida presidencial dos Estados Unidos. Kamala Harris se apresenta como principal nome para a presidência pelo Partido Democrata. Desde 2021, ela ocupa o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos. O que muita gente não sabe é que a primeira vice-presidente negra das Américas não foi Kamala Harris. Em 2018, a Costa Rica elegeu a economista Epsy Campbell como vice-presidente do país, cargo exercido até 2022, ano que a Colômbia também teve sua primeira vice-presidente negra, a ativista e advogada Francia Márquez.
Quando comecei a estudar a imigração latino-americana no Brasil e nos Estados Unidos em 2011, sempre me incomodou a maneira distante como, geralmente, as pessoas no Brasil se referem ao nosso continente. Falamos em “América Latina” em terceira pessoa, como se não fôssemos parte dela. Apesar disso, compartilhamos muitas similaridades. A colonização traçou as linhas das nossas sociedades. Por trás da miscigenação, as nações latino-americanos estruturaram o racismo. Vivemos em sociedades muito plurais, mas também profundamente desiguais. Os espaços de poder, como a política, a ciência e a arte, continuam controlados pelas elites brancas. A tão celebrada mistura das culturas e sociedades “latinas” esconde a reprodução do branqueamento que explora e invisibiliza muitas pessoas do nosso continente, entre elas, as mulheres negras.

Como antropóloga negra brasileira inserida no campo de estudos latino-americanos, me sinto sortuda por ter construído uma relação mais profunda com os países vizinhos do que a grande maioria dos e das intelectuais do Brasil. No entanto, sou duramente afetada pela sistemática discriminação de raça e gênero não apenas aqui, mas também no Peru, na Colômbia, no México, na Argentina, no Chile, na Bolívia ou em Cuba. Essa discriminação se manifesta de formas muito variadas: em olhares de curiosidade, na constante avaliação do meu corpo, na exotização do meu cabelo, no questionamento da minha capacidade intelectual, no assédio. Ela me gera indignação, angústia, medo, raiva, mas não me paralisam. Apesar delas, encontro irmandade entre mulheres negras por onde eu passo.
Muito antes de mim, diversas mulheres negras na América Latina refletiram sobre o lugar delas nas estruturas de seus países. Assim, elas elaboraram outras geografias de vida, poder e liberdade que desafiam as fronteiras nacionais, assim como o racismo e o machismo e as demais sequelas coloniais. Um exemplo foi Tereza de Benguela. Na segunda metade do século XVIII, ela liderou o Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia. A partir de uma intensa circulação de saberes entre Brasil e Bolívia, populações negras e indígenas, Tereza formou a um território livre, com uma organização política, social e econômica autônoma. Desde 2014, o Brasil reconheceu o dia 25 de julho como o dia nacional de Tereza de Benguela e da mulher negra. Esta data foi escolhida em diálogo com o primeiro Encontro de mulheres negras latinas e caribenhas, que aconteceu em 1992 em Santo Domingo, República Dominicana. Naquele encontro, as mulheres negras consolidaram formas articuladas de combate às discriminações de raça, gênero e classe na região. Elas demandaram da ONU o reconhecimento de 25 de julho como o dia internacional da mulher negra latino-americana e caribenha. Em 2020, a data também foi reconhecida pelo Estado peruano como o día nacional de la mujer afroperuana.
Nos últimos anos, celebrei esta data valorizando a articulação do movimento transnacional de mulheres negras com a potência das mulheres negras de Três Rios e região no Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde trabalho. Em 2022, realizamos dois dias de aulas abertas, refletindo sobre organização política das mulheres negras. Com Runnie Exuma, hatiana-americana estudante da Columbia University aprendemos sobre o papel das mulheres na garantia da segurança alimentar no Haiti; eu e a professora Carla Curty discutimos o legado da intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez e da peruana Victoria Santa Cruz; a graduanda em Administração Jomara de Souza Gonçalves Duarte apresentou o trabalho do Benguelê Samba e Afins de valorização da cultura do samba em Três Rios. Em 2023, realizamos a mesa redonda “Mulheres negras e narrativas emancipatórias”, cujo foco foi refletir sobre o papel de liderança das mulheres negras na região centro-sul fluminense na construção da cidadania. O evento contou com a participação da doutora em educação, escritora e presidente do conselho fiscal do G.R.E.S Bom das Bocas, Leandra Jacinto Pereira, de Três Rios, de Regiane Carvalho, capoeirista, pedagoga e co-fundadora da ONG Negro Sim, de Paraíba do Sul e de Natália Lima, Crislane Rodrigues Rosa, Janaína Barbosa e Estefânia Rodrigues Barbosa, do Quilombo Boa Esperança, em Areal. Juntas, elas construíram um espaço de troca de conhecimentos teóricos, práticos e políticos desenvolvidos em suas experiências de vida e militância que superam as fronteiras de seus municípios.
Como mulher negra e professora do Instituto Três Rios há 15 anos, celebro mais um dia internacional da mulher negra latino-americana e caribenha com a certeza de que, apesar dos desafios, nós, mulheres negras, juntas, construímos novas geografias de afeto, conhecimento e poder.
*Professora do Instituto Três Rios e Programa de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade da UFRRJ; Professora Visitante do Institute of Latin American Studies da Columbia University (2021).
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