Enredos do carnaval trirriense para 2023, em sua maioria, exaltam a cultura afro-brasileira

Passado reúne temas dos mais variados e até inovadores como o que falou do sol e sua influência sobre a Terra

Comissão de frente do Bom das Bocas, em 1987, no enredo "O Mar de Minas Gerais", do carnavalesco Wanderley Rodrigues

O enredo é o primeiro passo para um novo desfile de uma escola de samba no carnaval. Desta forma, esse quesito, que inicia toda a trajetória de uma agremiação para o desfile na Avenida Condessa do Rio Novo, é muito bem pensado por diretores e, especialmente, pelo carnavalesco, que vai dar toda a visualização necessária na avenida, juntamente com o samba de enredo, a trilha sonora do desfile, para que público e jurados entendam o que será mostrado do início ao final do cortejo.

Hoje, as escolas de samba, assim que definem seus enredos, costumam lançar uma logomarca, que cria uma identidade para o desfile.

E é essa identidade que vai ser vista em todos os materiais de divulgação das agremiações, como redes sociais, camisas, peças de souvenir, entre outros elementos.

Fantasias, carros alegóricos e demais segmentos, incorporam a ideia do enredo e são personificados ao longo do desfile para que se forme uma verdadeira ópera no asfalto com mais de 300 figurantes em cena.

As cinco escolas de samba que estarão desfilando na passarela do samba da Avenida Condessa do Rio Novo, terão em seus enredos uma temática que envolve a cultura afro-brasileira, o que será feito de forma integral por Bambas do Ritmo, Sonhos de Mixyricka e Independente do Triângulo.

Responsáveis pelos enredos que serão vistos no desfile de 19 de fevereiro (domingo), na Avenida Condessa do Rio Novo (a partir da esquerda): os carnavalescos Comandante Armando Martins e Walter Matheus (Independente do Triângulo); carnavalesco Amarildo Lopes (Sonhos de Mixyricka); enredista Diego Araújo e o carnavalesco Gilber Rosa (Bambas do Ritmo); carnavalesco Victor Matheus (Mocidade Independente de Vila Isabel), e o carnavalesco Junior Pernambucano (Bom das Bocas)

Bahia na abertura do desfile

O desfile será aberto com o enredo de autoria do carnavalesco Comandante Armando Martins, desenvolvido pelo carnavalesco Walter Matheus, em homenagem ao artista e jornalista argentino, cidadão baiano, Carybé, no tema “Bahia de Carybé”.

Hector Julio Páride Bernabó, era pintor, gravador, desenhista, ilustrador, ceramista, escultor, muralista, pesquisador e historiador, brasileiro naturalizado, que morou no Rio de Janeiro e na Bahia – onde viveu a maior parte da sua vida – até sua morte, em Salvador, em 2/10/1997. Carybé se apaixonou pela cultura africana e dela fez sua arte por meio de belos quadros que retratavam o cotidiano, as tradições e a religiosidade daquele estado.

A cultura africana estará novamente na Avenida Condessa do Rio Novo no desfile da Sonhos de Mixyricka que vai levar à passarela o enredo "Nyambê - Os Filhos do Ventre Sagrado Africano", do carnavalesco Amarildo Lopes.

O enredo fala da saga do negro desde a África ao Brasil, retratando todo o sofrimento, mas destacando o negro em sua luta e o seu valor na sociedade e todo o legado deixado pelos povos que chegaram ao Brasil, que, mesmo sem os registros literários de sua cultura, de forma oral, passaram por suas gerações toda a consistência de uma história e cultura ricas em diversas manifestações.

Em seguida, a passarela vai se transformar num “Mokambo”, título do enredo da campeã de 2020, Bambas do Ritmo, que vai mostrar o tema do enredista Diego Araújo.

"É um enredo para o Bambas olhar para sua história e reconhecer suas raízes. Não é um enredo de sofrimento ou lamento, é um enredo de luta, reafirmação, orgulho e retomada”, revela Diego Araújo.

O tema proposto vai resgatar momentos importantes na própria história da escola, quando temas afros foram apresentados e marcaram a trajetória da vermelha e branca em memoráveis desfiles.

O Bambas do Ritmo é um celeiro de momentos marcantes da cultura africana, por meio do que apresentou na avenida e de grandes baluartes que foram importantes nomes na firmação dessa temática sobre o negro e o valor de seus ensinamentos e resgate de sua história e da força que ela impõe ao carnaval e à escola de samba.

Quarta escola a pisar na avenida, a Mocidade Independente de Vila Isabel vai exaltar a chuva, por meio de uma temática indígena que se reporta ao ano de 1973, quando a agremiação, logo na estreia, foi campeã desfilando sob forte temporal que caiu em Três Rios naquele ano. A Mocidade era considerada uma escola fraca, por ser iniciante, mas acabou levando o título.

“Chuva Madrinha – a matriz da vida que batizou a nossa folia”, do carnavalesco Victor Matheus vai exaltar os 50 carnavais da escola desde 1973, quando aconteceu a estreia na passarela da Condessa do Rio Novo. O enredo seria para 2021, quando foram comemorados os 50 anos de fundação, mas, sem a realização do desfile, ficou para 2022 e acabou adiando mais uma vez para 2023.

Além de desempenhar um papel fundamental na manutenção da vida no planeta, a chuva faz parte da história da escola marcando principalmente a vitoriosa estreia na passarela do samba.

Fato que inclusive fez com que sua simbologia fosse estampada no pavilhão tricolor", disse o carnavalesco.

A chuva no desfile da Mocidade também será abordada no clamor do sertanejo para o fim da seca, na mitologia africana com os orixás Oxumaré e Oxum, ressaltando ainda a importância da chuva para a terra e as plantações. Mas, a esperança é que a escola repita o título, mas desfilando sob uma noite de lua e estrelas.

O desfile será encerrado com o Bom das Bocas, escola de samba que completou 60 anos de existência no dia 6 de janeiro.

O enredo “Folia Nossa de Cada Dia”, de autoria do consagrado carnavalesco Junior Pernambucano, vai levar à avenida a folia de reis, importante manifestação folclórica que tem uma ligação forte com a escola de samba do bairro da Caixa D´água, além da folia do carnaval, a festa que tem grande tradição por todo o país e o mundo.

Todo esse conteúdo tem no contexto uma exaltação ao aniversário da verde e branca, que promete encerrar o desfile com uma apresentação para ficar em sua história e superar as recentes colocações obtidas em 2019 e 2020, quando a agremiação ficou em 3º lugar, o que nunca havia acontecido em toda a trajetória como escola de samba desde 1972.


Enredos que fizeram história

Ao longo de décadas, as escolas de samba de Três Rios levaram temas interessantes à avenida, com histórias que falaram sobre o negro, os indígenas, colonização portuguesa, enredos abstratos falando de amor, dos sonhos, falando de Três Rios e da região, ou que retrataram costumes e tradições folclóricas brasileiras.

E até fora do planeta, como foi o caso do enredo “Giramundo”, apresentado pela escola de samba Bambas do Ritmo, no carnaval de 1977.

O tema falava sobre o astro-rei, dos planetas, dos movimentos de translação e rotação e das estações do ano.

De autoria da professora, historiadora e escritora Ezilma Teixeira, o enredo foi uma ousadia na época. O desfile rendeu o segundo título da história da escola do Cantagalo naquele ano.

Outro que se destacou em sua versatilidade como carnavalesco e enredista, foi Wanderley Rodrigues (9/7/1924-23/8/1995), o saudoso Mestre Leley, que criou enredos marcantes para o Bom das Bocas, durante o período em que atuou na escola, entre 1974 e 1994.

Entre esses temas interessantes, podemos destacar o estudo feito sobre a origem e tradição do carnaval trirriense desde os ranchos e blocos até as escolas de samba da cidade. Em 1979, a verde e branco do bairro da Caixa D´água apresentou o enredo “Da Catinga da Nêga ao Bom das Bocas”, que resgatava importantes agremiações carnavalescas desde o distrito de Entre-Rios até a cidade com o nome atual, como os saudosos ranchos ‘Catinga da Nêga’, ‘Eu, Você e Vovó’, ‘Zezé Leone’, Maria Sapeca’ e ‘Vila Nova’, entre outros importantes fatos carnavalescos retratados no enredo e cantados pelo samba de enredo de autoria de Picolé, Ésio Paixão Almeida e Geraldo Lourenço. Mas, poeta e escritor Leley, nos devaneios literários, deixou enredos que tinham histórias fabulosas, a exemplo do tema apresentado em 1987, ‘O Mar de Minas Gerais’.

O querido estado não tem mar, mas, segundo o enredo, uma comitiva liderada por Iara, a deusa dos rios, na mitologia indígena brasileira, seguia pelo rio São Francisco, desde sua nascente na Serra da Canastra, passando pelos estados onde o rio corre, indo até desaguar no Oceano Atlântico, no limite entre os estados de Alagoas e Sergipe, para pedir a Netuno que levasse o mar à terra das Alterosas.

Durante o percurso, o carnavalesco mostrava no desfile algumas tradições folclóricas e lendas de cada estado por onde o Velho Chico passa deslumbrando a Avenida Beira-Rio.

O samba de enredo do compositor Pádua fez a trilha desse imaginário contado por Leley, num belo desfile que deu à escola o contestado vice-campeonato, num resultado polêmico, que obrigou a campeã, Bambas do Ritmo, a realizar seu desfile vitorioso na Avenida Ruy Barbosa, da Praça JK para o Cantagalo, como medida de segurança diante da polêmica com o resultado final após a apuração realizada na Ilha Di Capri (Ilha do Sola).


Muitas homenagens

As homenagens foram muitas e incluíram nomes conhecidos como Jamelão, o consagrado intérprete de sambas de enredo da Estação Primeira de Mangueira, que foi homenageado pela Mocidade Independente de Vila Isabel, em 1988, no empolgante desfile do enredo “No coqueiro dá côco.

Na Mangueira, dá Jamelão”. O homenageado não desfilou, mas fez um show na quadra da escola da Vila Isabel com quadra cheia.

Ao completar os 50 anos de emancipação político-administrativa, em 1988, Três Rios também foi homenageado por meio do enredo "Entre-Rios de Sonhos e Liberdade", da historiadora e escritora Ezilma Teixeira.

O enredo ganhou esmero até na pasta dos jurados, dentro de uma caixa de madeira com o brasão do município talhado, num primoroso trabalho.

Outro homenageado, até então desconhecido de muitos, mais conhecido no ambiente acadêmico, foi o pernambucano Josué de Castro, homenageado pela escola de samba Independente do Triângulo, no desfile de 2005.

De autoria de Joel São Tiago, o enredo “Josué de Castro – Profeta da Fome, Combatente da Dignidade”, exaltava a trajetória do médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor e ativista brasileiro do combate à fome.

Um desfile protesto, mas forte na mensagem de consciência na luta pela desigualdade social. E muitas outras homenagens foram feitas nos enredos que falavam do poeta e escritor Manuel Bandeira, à Música Popular Brasileira, ao compositor Lamartine Babo, ao poeta Casimiro de Abreu, ao arqueólogo e explorador britânico Coronel Percy Harrison Fawcett, ao cantor Lupicínio Rodrigues, ao líder negro Zumbi dos Palmares, à guerreira quilombola Dandara, à dança, à moda, à noite, ao vinho, à cerveja, às máscaras, ao circo, aos sonhos, à literatura infantil, à literatura de cordel, ao teatro, ao café, entre outros.

A crítica, hoje pouco abordada pelas escolas de samba da cidade, já passou pelas avenidas Beira-Rio e Condessa em enredos marcantes, como foi o caso do tema “De olho nas penas”, da carnavalesca Laís Helena Cancela, que em 1987, deu o título ao Bambas do Ritmo.

O tema fazia críticas à injustiça e à desigualdade, tendo como base o livro homônimo, da professora, jornalista e escritora carioca Ana Maria Machado, lançado no início da década de 1980.

Na obra, Miguel tinha dois pais e vivia mudando de país. Nesse constante ir e vir vai descobrindo os segredos do mundo e a história da América Latina. Um livro que trata com delicadeza da questão do exílio durante o regime militar no Brasil.

O samba de enredo, do compositor Marcílio Lacerda, é considerado um dos mais bonitos da escola: “Pelos rios naveguei. Nas savanas procurei. Mas a minha liberdade só no Bambas encontrei”.

Em 1989, o Bom das Bocas, incorporou lendas, crendices e crítica social ao enredo “Acredite se quiser”, de Wanderley Rodrigues.

O enredo fazia sua crítica à situação econômica do país, fazendo um protesto contra o então presidente da república José Sarney .

“Xô, xô Bigode, não me leve a mal. Sou Bom das Bocas vou brincar o carnaval”, traziam os versos no refrão do samba de enredo.

Em 2004, a escola de samba Em Cima da Hora, do bairro Monte Castelo, apresentou o enredo "Pátria Amada Brasil", do carnavalesco Fernando Ferreira.

O enredo exaltava as belezas naturais do Brasil, as características regionais do país e do povo brasileiro e fazia críticas aos problemas sociais como a fome, às doenças e ao atendimento público na saúde.

A escola acabou ficando com o vice-campeonato, perdendo para as campeãs empatadas na primeira colocação, Bom das Bocas e Mocidade da Vila.

Fotos: Reproduçãofull-width

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