A verdadeira redentora



Está provado que não foi a Princesa Isabel a verdadeira redentora. A História, sempre implacável, apurou que ela assinou contrariada a abolição.

Nada, naquela altura do campeonato, justificava uma isolada Monarquia em meio às repúblicas que inundaram as Américas.

Se foi a Inglaterra quem primeiro impôs o fim do tráfico negreiro, em 1807, que lhes conferia o direito de busca e apreensão de embarcações suspeitas, e D. Pedro I não cumpriu o acordo, como último recurso os ingleses enviaram para nosso país um emissário. Seu nome: Charles Miller.

Traria na bagagem um instrumento de liberdade que nem o mais racista dos fiscais alfandegários perceberia: uma bola de futebol.

Como tudo que veio da Europa, logo as elites se apossaram de sua posse e guarda. Apenas os brancos a tocavam em gramados bem cuidados, como o do Fluminense FC. Todos se divertiram muito com o novo esporte, mas essa não era a missão daquela redentora.

Para a definitiva libertação, foi preciso que ela rolasse, de pano, couro, borracha, nos campinhos de pelada das periferias. Como único brinquedo daqueles pobres meninos descalços e sem camisas.

E foi ali, num duelo de destreza com buracos, montinhos artilheiros e uma árvore que vinha na cobertura, que nossos meninos criaram atalhos, como o drible da vaca, recursos impensáveis, como tabelar com os muros.

E foi ali, jogando de dia, matando aula à tarde e levando a disputa de pênaltis para as luzes de um poste, que foi desenvolvida a arte e a genialidade de uma nação.

Um Rei, Pelé, um Príncipe, Ivair, e nosso embaixador na França, emérito portador da Medalhe de Honra de Napoleão, Paulo César Caju.

Meninos que mudaram a vida dos seus e em primeiro lugar compraram uma casa para seus pais. E depois, saíram pelos gramados com sua redentora nos pés a encantar o mundo.

Quando Vinicius Jr, Rodrigo, Luiz Henrique, entre tantos Marcelos e Gabriel Jesus, sobrevoaram o continente africano em um jatinho na primeira classe, tomando o caminho de volta que seus ancestrais realizaram nas últimas classes, em navios negreiros, de onde trouxeram em sua linhagem ingredientes únicos da mestiçagem, certamente acenaram agradecidos.

E vivem a render seguidas homenagens tratando com carinho, a cada partida, aquela esfera que se tornou sintética, por ter assinado, com a tinta da dignidade sobre um contrato de três anos com o Real Madri e com o Bétis, a verdadeira abolição da nossa escravatura.

Por José Roberto Padilha

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