Corpus Christi, convite para uma existência eucarística - I

Amanhã é o dia da grande festa da Eucaristia, chamada solenidade de “Corpus Christi”, a qual ocupa, sem dúvida, um lugar privilegiado na nossa espiritualidade cristã. Mas, o que mesmo celebramos quando celebramos “Corpus Christi”?

Tapetes de beleza indescritível preparados em nossas ruas centrais, muito incenso e muito pálio pode nos impedir ver o que há por detrás da fumaça e entre os adornados tecidos que cobrem o Corpo de Cristo; muitas vezes, oferecemos uma visão um tanto distorcida, difusa, imprecisa, desse “mistério”: “Deus se faz Corpo e assume todos os corpos”.

Nesse ano, com o isolamento social frente à pandemia do coronavírus - ajudados pelo meu amigo Padre Adroaldo Palaoro, SJ. - somos convidados a voltar com a memória cordial àquela casa onde o ritual pascal judaico dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências... E assim buscar recuperar o essencial. Fazer memória para comemorar.

E podemos fazer este “retorno memorial” em companhia do “homem do cântaro de água”, relatado no evangelho da liturgia do Corpus Christi: Mc 14,12-16.22-26.

Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protagonismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico.

Um dos mais desconhecidos é o “homemdo cântaro de água”.Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção.

Uma aparição tão efêmera no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós nesta festa de “Corpus Christi”.

Chama-nos a atenção a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.

Anônimo perante a posteridade, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.

O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade, capturada pelo evangelista. Mas não; não é isso que acontece com ele.

O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “homem do cântaro” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos.

No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus. Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação.

Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.

Aproveitemos da dura singularidade desse tempo pandêmico para, a exemplo do homem do cântaro, oferecermos nossa casa ao Senhor Jesus, mediante a acolhida fraternal. E na próxima semana continuemos esta reflexão de capital relevância para a cultura pós-moderna individualista e encastelada. Acolher o irmão, especialmente o carente, é acolher o Corpus Christi!

E convido-lhe, para que neste feriado religioso reze a sua própria humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo expressar-se em louvor e gratidão. Entre em sua “casa”; reze no seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor!

Medoro, irmão menor-padre pecador

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